quarta-feira, julho 08, 2009
Daline Rodrigues Gerber, 2007
Os alunos descreviam o dia-a-dia da UFF, o aspecto físico de seus campi, compartilhavam alegrias e tristezas da vida acadêmica, as amizades, os professores, as ambições futuras, etc. O cotidiano acadêmico, embora com diferenças, não me pareceu distinguir-se largamente do de hoje. No entanto, não pude deixar de notar a boa fluência, até certa eloqüência, na habilidade lingüística com que produziram seus textos, qualidades raras nas redações dos estudantes de hoje, explicável, é claro, pelo processo massificador e falso-democrático da Educação brasileira. Mas isso não vem ao caso agora.
O fato é que, depois de ter lido crônicas com conteúdos tão semelhantes ao atual cenário em que me encontro hoje, me deparei com o último e mais interessante dos textos. O aluno João Barata Ribeiro foi quem o escreveu. Nele temos verdadeiramente um fato histórico que muitos desconhecem, acontecido aqui mesmo, na Universidade Federal Fluminense, intitulado pelo autor como “A revolução da palavra”.
Conta a crônica que houve na UFF uma professora de Filosofia, Sociologia e Teoria da Literatura que era considerada uma das figuras mais sábias do país nas décadas de cinqüenta e sessenta. Essa professora, cujo nome era Joana Tabará, escrevera mais de cem livros de caráter filosófico, que tinham como princípio ajudar cidadãos comuns a entenderem e conviverem bem com a realidade. Seu trabalho era bastante reconhecido e aplaudido pela elite, que a apoiava e a patrocinava. Os alunos lhe eram gratos por suas tão compreensíveis e acessíveis aulas, plenas de respostas claras, ativas e eficientes.
Certo dia, numa de suas aulas, Tabará pedira aos alunos que pegassem seu livro “O destino é uma escolha” e o abrissem na página trinta e sete. Começou a ler e comentar cada parágrafo lido:
– ... Vejam, então, que Amanda está vestindo uma blusa azul hoje, porque escolheu usar uma blusa azul e não uma blusa rosa. Da mesma maneira que uma mulher é faxineira, porque escolheu ser faxineira, pois não quis freqüentar a escola...
Nesse momento da aula – conta a história – o telhado da sala caiu sobre a cabeça da culta senhora e a fez ficar, além de muito ferida, inconsciente. Levaram-na então ao hospital e lá permaneceu em coma durante dois anos.
Quando finalmente Joana Tabará retornou ao magistério, deparou-se novamente com a turma que presenciou seu acidente. Ao mesmo tempo em que eles a recebiam com alegria e palmas, ela os olhou com seriedade e frieza:
– Posso começar ou terei que esperar vocês soltarem fogos lá fora?
A turma silenciou temerosa e aflita. Ela continuou:
– Pois bem. Se alguém tem algum livro escrito por uma tal de Joana Tabará, joguem-no fora agora.
Ninguém entendeu nada:
– Joana Tabará?... Mas a senhora é Joana Tabará!
– Não sou Joana Tabará. Hoje sou Joana Morus, descendente de Thomas Morus que escreveu o livro “Utopia” e vocês são a minha Ilha de Utopia. Responda, apontou para uma menina, quem é você?
– Sou Olívia...
A professora olhou com reprovação.
– Sou... hum... uma ilha?
– Pois bem. Vocês são o lugar mais perfeito do mundo: uma ilha deserta. Digamos que, dentro dessa ilha, podemos construir um lugar perfeito. Descrevam como seria esse lugar sem guerras, sem imperfeições. E a aula prosseguia...
No outro dia...
– Hoje sou Joana Marx, amiga íntima de Karl Marx e Friedrich Engels, escritores do livro “A Ideologia Alemã” . Sou uma milionária e tenho muitas empresas. Vocês são meus trabalhadores assalariados. Vendo giz, este é meu produto. É preciso muita cal para fazer giz, a cal é uma matéria prima barata, vocês é que são caros para mim. Vocês trabalham oito horas por dia e quem calcula o salário de vocês sou eu. Para que eu continue rica, se eu quiser, posso pagar a vocês apenas quatro horas de trabalho. Meu maior lucro está exatamente no trabalho que não pago a vocês... Eu tenho o capital, vocês não têm escolha... ou vocês têm escolha?
No dia seguinte...
– Hoje sou Joana Freud. Analisemos a idéia de que todas as crianças desde cedo têm impulso sexual... Vamos ler trechos de “Édipo Rei” ... Vocês não acham que Édipo não teve a oportunidade de ter complexo de Édipo?
No dia posterior...
– Hoje sou Joana D’Arc e vim salvar a França, minha nação... Mas que é nação?
– Hoje sou Joana Grécia Antiga, discípula de Sócrates e Platão e estamos todos numa caverna escura...
João Barata Ribeiro conta que foi um dos alunos que presenciaram a mudança constante da professora Tabará, dia após dia, através da palavra. Cada dia ela era uma e os alunos, outros. Cada dia aprender era aprender de verdade as mentiras e as verdades. Na última aula, conta o cronista, todos os alunos compareceram em peso para as despedidas. A professora abriu a porta sorridente e disse:
– Queridos alunos, vocês também foram meus professores. E eu espero ter feito companhia nas diferentes veredas por onde caminhamos juntos. Hoje, meu nome é Joana Tabará, e todos os outros nomes que já tive até aqui moram em mim.
PS: Por algum motivo que desconheço, o livro de crônicas sumiu da biblioteca. Tive, então, a idéia de registrar esse belíssimo relato, cujo original, me contam, já não tem similar.