domingo, novembro 07, 2010


CRIAÇÃO, CULTURA E JONGO

Por: Daline Rodrigues Gerber

Nós, humanos, somos os únicos seres ilimitados na arte de criar, pois, criamos, através do que já há na natureza, objetos, instrumentos, movimentos, monumentos, etc. e inventamos também realidades, seres, mundos imaginários. Esta característica humana é incessante, atravessa gerações, temos, inclusive, dados comprobatórios na própria pré-história. A partir daí conclui-se que homem, arte/criação e cultura realmente são indissociáveis.

Parece interessante fazer uma prévia do que inventamos ao longo dos séculos: Lanças e flechas para a caça de animais, desenhos nas cavernas, paredes, telas para registro de acontecimentos e impressões da vida objetiva e subjetiva, esculturas também com o mesmo fim, a escrita, artesanatos, roupas, calçados, construções para moradia, culto a Deus ou a Deuses, construções para culto a vida e a morte, ou locais para apresentações artísticas, inventou-se a roda, a engrenagem, a carroça, a fábrica, as máquinas agricolas, o carro, o trem, o avião, o foguete, a fotografia, o rádio, a televisão, telefone, a culinária, remédios e instrumentos de medicina, instrumentos de guerra e de tortura, entre outras coisas.

Há muita coisa boa e do bem que foi criada, pensada para nos unir, nos salvar do frio, da fome, das doenças. Entretanto, também inventamos coisas para ferir, matar, humilhar, tanto instrumentos físicos, quanto instrumentos ideológicos: palavras, leis, mitos.

Desde que o homem é homem, temos dificuldades em levarmos uma vida sem conflitos, guerras, inimizades, intolerância, exclusão, individualismo. Estes comportamentos nasceram junto com o inconformismo de aceitarmos que somos iguais dentro das nossas próprias diferenças. Não aceitamos, por exemplo, a multiplicidade de como é visto e sentido o amor, a diversidade de cores, tipos físicos, escolhas. Cada grupo e cada individuo cria em seu imaginário um homem perfeito e uma sociedade perfeita e acaba se frustrando e repugnando o que existe. Este comportamento ocorre tanto em grupos de pessoas pobres, quanto - e talvez mais ainda - em grupos ricos e eletizados. É natural ficarmos inconformados quando um grupo ou pessoa trata o seu próximo como insignificante, escravo, objeto, coisa e é muito natural também que briguemos pela igualdade de ser-humano... o incoformismo anti-natural é o inconformismo cultural, em que as pessoas não aceitam a crença umas das outras, a opção sexual e afetiva umas das outras, o modo como se vestem, se são ou não tatuadas, se têm vícios ou não. Cada um deve respeitar seu próprio espaço e contexto, sem ultrapassar os limites do respeito pelo outro, tudo é permitido, mas nem tudo é permicível, basta termos bom senso em como e onde exerceremos nossa liberdade, para que a diversidade vigore e se revigore.

Há pouco tempo conheci o Jongo através da minha amiga Carolina Oliveira. A principio estranhei um pouco a dança e a música, afinal, não faziam parte de algo com que convivia, não era algo de que tinha conhecimento pleno e enbasado. Em sua casa, Carol ligou o som e começou a me passar os primeiros passos da dança. Me pareceu difícil a princípio, mas com o tempo fui me envonvendo de tal modo com o tambor e com a diversão de jogar com o corpo que pretendi ir mais além, e fui. Numa quinta-feira, eu e Carol, com saias rodadas fomos à Cantareira (Gragoatá - Niterói - RJ) participar da Roda de Jongo Folha de Amendoeira. Dancei pouco e desengonçada. Mas fiquei encantada com a solicitude dos dois rapazes de garra que tiveram a iniciativa de fazer uma roda de jongo aberta, em plena praça, de quinze e quinze dias na praça: Rodrigo Rios e Elias Rosa. Enfim, toda gente reunida numa roda, olhando um ao outro, contemplando um ao outro, com sorrisos, com alegria verdadeira. Hoje faço parte do grupo com muito orgulho e - é verdade - com muito pouco tempo para me dedicar mais.

A história do Jongo é muito bonita e corajosa. Como sabemos, a ambição sempre foi um grande inimigo da união, assim, os europeus com sua sede territorial e economica, nos séculos XV e XVI, começaram a explorar os mares e invadir lugares para aumentar suas riquezas. Portugal se apoderou do território Brasileiro onde havia grande riqueza natural, como a Africa não era tão rica em termos de recursos naturais para as necessidades dos portugueses da época, Portugal utilizou a politica da escravidão, ou seja, exploram a Africa em outro sentido. Os indios resistiram, eram delicados, trabalhavam apenas para a sua sobrevivencia, tinham dificuldade em se curvar. Entretanto, os africanos já conheciam o trabalho duro e já conheciam a escravidão, pois foi um regime utizado entre eles mesmos: "(...) Muitos séculos antes da chegada dos brancos europeus à África, as tribos, reinos e impérios negros africanos praticavam largamente o escravismo, da mesma forma os berberes e demais etnias muçulmanas." Escrevo, entretanto não tenho como garantir veracidade, são livros de história escritos por europeus que me informam tal dado. Bom, enfim, o negro foi tido pelos brancos como animais, seres sem alma, sem pátria, sem cidadania, máquinas do trabalho. Algumas famílias portuguesas se instalaram no Brasil em casas de fazendas, nelas construiam senzalas onde ficavam multuados os negros vigiados por aquele a quem conhecemos como capacho. Nos poucos momentos de lazer que os negros tinham, eles dançavam, cantavam e tocavam tambor. Em seus cantos não podia haver palavras de ameaça ou desrespeito aos seus "senhores", com isso, os negros se esforçavam para inventar expressões metafóricas que fossem capazes de comunicar aos outros suas insatisfações, seus sentimentos amorosos, e até mesmo cantos que fossem capazes de combinar fugas e ataques aos brancos. Assim, resistiam os negros: com o corpo, com a voz, com a dança, assim, eles reafirmavam a condição deles de humanos, de seres pensantes, desejantes e amorosos.

Por lei, hoje, todos os seres humanos são livres. O importante, acredito, não é mais o papel, o importante agora é a consciência de que somos iguais, de que somos todos dignos, importantes, de que toda religião tem suas peculiaridades, mas com fins muito próximos, é necessário sabermos que todos nós contribuímos para a preservação ou destruição do mundo com nossas invenções concretas ou imaginárias-ideológicas. A idéia de raça já caiu por terra, não é justo termos ainda que ouvir que uma pessoa que traz na pele o tom preto-marrom dizer que é discriminada, que tem que lutar para ser incluída na sociedade, sendo que todos somos mestiços, temos avós, bisavós ou algum antepassado africano, indio, etc. Não é justo ter que sustentar um discurso em defesa dos negros quando negros somos todos nós.

Quando estou na roda de jongo presto atenção nas pessoas e em quanto bem uma tradição que surgiu dentro do sofrimento pode fazer para as pessoas. Ali na roda há uma multiplicidade incrível de cores, alturas, tipos físicos... é quando vejo que as pequenas manifestações podem ter grandes proporções: é o que acontece na rua que é capaz de unir as pessoas, não é o que acontece na televisão, na ficção. Na roda, as pessoas se vêem, se escutam, trocam grande energia renovadora. É preciso apenas tomar cuidado para não quebrar essa magia com discursos de desafetos, ofensas, exclusões. Nunca na minha vida eu tinha visto algo tão capaz de unir as pessoas, que isso se preserve, que resista, que persista, que alcance várias e várias gerações. É criação nossa, minha gente, e tem tudo para ser, estar e permanecer do bem.

Com carinho, Daline.

Comente:
Oi dalinizinha,
Você resplandece amor! É sério, vc tem olhos para olhar o que cada um tem de especial e amar todos com uma intensidade com que poucos conseguem. Mas uma coisa é o mundo visto por seus olhos de igualdade, outra coisa é a realidade de um mundo onde ainda existe muita injustiça. Acho que a realidade nos mostra que a discriminação dos negros ainda existe. E quando defendemos os negros estamos lutando por essa igualdade. Estamos querendo abrir os olhos das pessoas justamente para essa possibilidade de igualdade e união. E toda defesa daqueles que de alguma forma foram excluídos é válida. Porque se a gente não cutucar, não rever esses males do passado,
não cantar nossos pontos, não se manifestar, as coisas podem continuar como estão.
Vi os olhares de todos vocês pela primeira vez na magia da roda de jongo. Ali, um de frente para o outro, a gente
se descobre e se une. E se une também a nosso passado, a nossa história. Vira beija-flor, não é mesmo?
bjim
 
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